Extremos



A manhã ainda não começou. Contudo, a madrugada descortina contundentes antagonismos. Impiedosamente, são descarriladas dramáticas contradições defronte de mim. Em plena antemanhã, sob a inexistente luz que toma minha existência, tudo se obstaculiza vertiginosamente.

Enquanto inúmeras criaturas permanecem em período de sono, minh'alma adquire aspecto nublado: visões variadas habitam meu espírito. Um verdadeiro conflito mental se inicia, ao passo que caminho penosamente na desértica rua. Fazer uma síntese não é tarefa fácil ou trivial. Porém, tem vital relevância para o avanço e consolidação de qualquer pauta ou tema.

Paralelamente ao meu andar na úmida calçada, brota um humano estranho. A frase anterior pode soar como pleonasmo, mas o elemento é mais esquisito que o normal. Interrompe meu momento de elucubração e, com insistência peculiar, decide fielmente me seguir na rua. Maravilha, situação inédita! Eu jamais havia sido perseguido ou assaltado.

Não lamurio. Flagro uma perspectiva de solução para a circunstância em que meus bens ou até mesmo minha vida podem ser facilmente subtraídos por um sujeito escalafobético que eu jamais vira.

Diante desta situação sem precedentes em minha vida, preciso improvisar e utilizar da inteligência. Não digo isso no sentido prepotente ou arrogante, de forma alguma. Falo na semântica de eficácia. Como diria Jean Piaget, grande psicólogo suíço, “a inteligência é o que você usa quando não sabe o que fazer”.

Após imensa adrenalina, consigo me desvencilhar da encruzilhada. Sinto os batimentos cardíacos acelerados. Ainda sigo perplexo e alucinado com tudo que acontecera naqueles instantes. Eu poderia ter perdido minha vida sem maiores explanações. Tudo ainda tamborila dentro de minha cabeça.

Essa sensação de perigo, que gera pânico em qualquer sujeito, é a pedra angular da reflexão que tentarei transladar nessas vãs linhas. Surgem duas vertentes diametralmente opostas. Uma paralaxe inunda minha rede neural. Um amálgama de despropósitos, intensamente combinado com ideias alumiadas, desvela um verdadeiro caos.

De um lado, ouço a voz do moralismo. Seus arrazoados são compreensíveis e corretamente entendidos num contexto de fúria ou revolta. Aos gritos, a voz do moralismo afirma: "um elemento desses merece morrer, é apenas mais um vagabundo e marginal. Bandido bom é bandido morto".

Sob uma ótica diferente, ouço o outro extremo. Escuto a voz da relativização. Suas queixas são equipotenciais às anteriores. Contudo, de direção e sentido inversos. A relativização afirma, terminantemente, que a pessoa teve motivos para fazer o que havia feito comigo: "talvez tenha passado por situações puramente graves em sua existência. Portanto, não tem culpa de se tornar quem é hoje. É uma vítima do sistema injusto. Logo, precisa de ajuda e apoio".

O radicalismo é tóxico por si só, seja qual for o lado. Não obstante, a polarização (promovida pela tensão entre visões de sentidos e direções irreconciliáveis) pode produzir algo brilhante, que é a síntese. Com a união do ponto positivo de cada uma das visões divergentes, é promulgada a criação de uma visão mais rica e robusta. Portanto, ter confrontos entre opiniões inteiramente dessemelhantes é muito importante.

Mas para mim, qual o correto? Qual o justo? Um polo ou o outro? Nenhum: em minha concepção, não há verdade absoluta nas extremidades. Não vejo sentido no moralismo epidérmico ou na relativização despudorada. Nenhum me seduz. O que faço é unir a parte interessante de cada uma das duas convicções, extirpando a parcela danosa delas. Bem, vamos lá [...]

Realmente há infindos e graves fatores, presentes em nosso injusto e vigente sistema, que possibilitam a manifestação de ações maléficas em pessoas "boas". Não estou sozinho nessa afirmação, pois o cacifado psicólogo Stanley Milgram já dizia:

"Pessoas comuns, que estão apenas fazendo o seu trabalho e não apresentam qualquer tipo de hostilidade, podem tornar-se agentes de um processo terrível e destrutivo."

A desigualdade, oriunda de um sistema agudamente mortal, é a mais séria patologia da nação (bem antes da corrupção). Além disso, está cravada no coração deste sofrido povo. Uns com tanto, outros com nada [...]

Milhões de infâncias sonegadas, imensuráveis direitos básicos roubados, moradias indignas em cubículos irrespiráveis, entre tantos outros graves problemas advindos da concentração do poder nas mãos de uma elite rasteira e despreparada [...]

Essa violência social (que não sangra) conduz muitos indivíduos ao crime, pois estes são criados como monstros. Nem todos tem a chance de inserção na famigerada meritocracia. Diante disso, veem na violência física uma saída prática para a obtenção de tudo o que desejam. Se iludem, numa falsa esperança de sucesso.

Não entendo o porquê de muitas pessoas pasmarem diante dos crimes bárbaros que ocorrem no país: alguém realmente pensou que uma nação plantadora de armas e álcool em toda esquina não colheria anomia e um cenário distópico? Neste momento, algum ser espeloteado e esdrúxulo dirá, com crônica ausência de empatia:

“Ah, mas eu conheço muita gente que não tinha condição alguma e não fez nada de errado.”

Ótimo, isso é o que desejo que aconteça sempre. Porém, isto não é regra, é exceção. Não é sensato imaginar que, pessoas sem qualquer tipo de condição basilar para uma vida honrada, terão discernimento necessário e escolher o caminho ideal sempre. É preciso ter muita força mental para isso. Se alguém não viu, desde que nasceu, qualquer tipo de amparo ou cuidado, é de se esperar que não guarde nenhum apreço pela própria vida. Pior ainda: que não sinta o teor do alheio.

Apesar de não dimensionar a dor (pelo fato de não viver na mesma realidade), entendo que é selvagem e bestial não ter as mínimas circunstâncias positivas para uma vida razoavelmente digna. Não é nada justo mesmo. Um sistema apinhado de assimetrias. Decidida e literalmente fatal.

Entretanto, por mais que eu cultive uma natural afinidade com a profunda análise sobre as motivações da mente (em vez de analisar de maneira rasa e tosca), não relativizo de maneira inconsequente. Na interpretação deste tópico, é preciso delimitar claramente um território que não possa ser extrapolado. Relativizar é uma coisa, porém, arrancar a responsabilidade do autor de ações perversas, é outra.

Eu entendo que, muitas vezes, o criminoso não tem culpa do que faz. Entretanto, a vítima também não tem culpa, não? Ninguém tem o direito de prejudicar a vida alheia. Portanto, é uma situação que não se soluciona nem com a empatia pelo monstro gerado através de um sistema deturpado, nem com a rigidez inflexível e intolerante. Se apenas aceitarmos que um “monstro” do sistema cometa crimes, sua ação será legitimada. Se apenas combatermos violência com violência, tergiversaremos e procrastinaremos acerca da real solução.

E qual a resolução para esta dramática e complexa questão, sendo que não é produtivo seguir a linha intransigente, tanto de um lado quanto de outro? Em minha visão, a resposta franca e profícua para essa situação é encarar com a profundidade que a circunstância requisita.

É imprescindível exterminar o malefício em sua raiz, sem mascarar um gigantesco problema com mentiras. Dando condições justas e minimamente aceitáveis, tenho absoluta convicção de que inúmeros indivíduos não seriam “monstros”. Muitos podem ser criminosos por sérias arestas de nascença, não podendo conviver em sociedade, mas muitos outros são condicionados pelo meio em que vivem.

Em linhas gerais, é imperativo agir na gênese da vicissitude, plantando educação de alta qualidade desde a infância e propiciando condições humanas de vida. Caso contrário, continuaremos nos dois extremos de não retorno: advogar em favor de criminosos, sempre relativizando ações desumanas, ou decretar uma guerra que atinge a consequência, mas não a causa, aumentando o ódio e adiando a decifração do assunto.

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